Uma latrina irrespirável

Salò ou Os 120 Dias de Sodoma | Pier Paolo Pasolini | Itália / 1975


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Habitamos sociedades doentes.
Por um lado, o impulso libertador e emancipador que percorremos na modernidade, tantas das vezes mais que legítimo, justo, aportou em sociedades denominadas de democráticas; por outro o irracionalismo bárbaro e regressivo a que nos vai conduzindo o aprofundar das reivindicações emancipatórias. Alguma coisa mudou pelo caminho. Provavelmente o Homem e a visão que este tem de si, do mundo e de si no mundo.
A matança de Deus, ao invés do que se supunha, não deixou o espaço aberto a uma humanidade livre de imposições morais ou, sequer, emancipada da servidão. Sem Deus, é o Homem que pretende ocupar esse vazio. Sem Deus, é o Homem que pressupõe dominar toda a realidade, inclusivamente a que o transcende, seja pela indiferença, negação o aberta hostilidade.
Talvez o maior pecado – a própria linguagem se des-teologizou  e pecado é hoje uma palavra ou interdita ou motivo de troça – da modernidade seja a soberba. O Homem orgulhoso, revoltado, decaído do Éden divino, alcandorado ao paraíso do aqui e do agora, ocupa-se agora em fazer da sua fantasia a lei moral.
Bem entendido, serve a moral a que haja o mínimo de possibilidade de convivialidade e, mais, de civilização. Logo, se a moral deixa de ser comum e dirigida para o Bem Comum e se resume a espasmos individuais e subjectivos – espasmos esses, recorrentemente procedentes do baixo-ventre – temos aqui pasto para a barbárie lavrar dentro do nosso próprio coração. O orgulho, insubmissão funesta a Deus, à única fonte experimentada pela Humanidade de verdadeira liberdade erige cada um de nós em senhor absoluto do mundo. Por conseguinte, a sociedade pouco mais é quem um desconcerto ruidoso e dissonante onde deveria ser lugar de polifonia.
Deus morreu e o Estado usurpou-lhe  o lugar. Daí ser imperioso o controlo do aparelho de estado para fins de supremacia de uma, parcial e sempre pobre, qualquer visão do mundo e do Homem. Daí ser do aparelho de estado a suposição de única e suprema fonte legislativa, para além do bem e do mal e do Direito Natural. Emanada de cima para baixo, de uma casta iluminada – os novos gnósticos – depositante fiel da moral que, autoritariamente, pretende e muitas vezes adquire o controlo social – os media e a Academia há já décadas que estão reféns destes neo-gnósticos, seguindo rigorosamente, aliás, o guião marxista de Gramsci e da Escola de Frankfut.

Não fosse a arquitectura a construção de um pensamento e, nesse sentido, também uma visão de um tempo no tempo, seria inexplicável que ela se furtasse ao zeitgeist. Até naquilo que este tem de mais patético, histérico e caricatural. E é exactamente no campo da linguagem e da cultura onde a demência hodierna alcança maior poder destrutivo.
Também como caricatura do métier, a arquitectura como prática cultural, está sujeita ao labor pernicioso deste progressismo de olhos postos na barbárie – ou não fosse a arquitectura o território predilecto das realizações da «desconstrução»:
Está aqui tudo: obsessão racionalista/modernista/estatista/totalitária da legislação e normativização – o Estado totalitário como fonte única da legitimidade da moral; nominalismo – a flatus vocis, já velha do séc. XI, que recusa qualquer juízo universal e faz tudo vaguear ao sabor do ‘acto da mente’; psicose, desafectação do real e das realidades que transcendem o Homem – o capricho soberano que não admite a contradição nem frustração; inversão da linguagem por forma a forçar a inversão da realidade (oh soberba) - género como radical afirmação da subjectividade e de domínio do sujeito oprimido sobre as condições naturais com que o sexo o surpreendeu desde o dia em que nasceu; liberdade como paupérrima expressão de uma birra; dissolução que qualquer possibilidade de lógica e racionalidade expostas à efémera vontade do baixo-ventre.
Se o lugar concreto no corpo da reivindicação LGBT(junte a inicial que lhe aprouver) é o ânus, por extensão, a sua realização arquitectónica é a retrete. Uma latrina irrespirável.