notas sobre o deserto


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O dinheiro é o deus.
Os mercados a sua religião.
Os milhões de desempregados as vítimas sacrificiais sobre o seu altar.

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Vivemos no ruído e na confusão.
Se a linguagem servia de território estável à convivialidade, à civilização, de há décadas que os progressistas têm vindo sistematicamente a «desconstruir» esse terreno comum. Não se negam as possibilidades criativas desta «desconstrução». Tanto estéticas quanto éticas. Mas a «desconstrução» da civilização é sistemática exactamente porque pretende, politicamente, a dissolução de uma sociedade e de uma civilização que, nos corredores da academia, da política, da intelligentsia, é vista como mãe de todas as opressões, discricionariedades e violências. É no íntimo da tolerância onde a serpente deposita os seus nefastos ovos.

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Temos que o político pretende a tudo sobrepor-se.
Vivemos o tempo de uma fundamental inversão. A política pós-antropológica pretende que o político a tudo se sobreponha. Ao reino da estética e ao da ética quando, na melhor das hipóteses, o político é justamente decorrência da estética e da ética. Mais que tudo ser relativo – que o não é – pior é tudo ser invertido. A começar pela linguagem em permanente redefinição - por exemplo: casamento já não é mais a união estável de um macho com uma fêmea com fim à procriação e à manutenção da espécie, mas uma união ilimitada onde cabe tudo o que o capricho ditar; género sobrepõe-se a sexo como psicótica ditadura do eu sobre as realidades imutáveis que o transcendem.
Desentendemo-nos agora na novilíngua que nos é implantada através de sucessivas vagas ideológicas: da esquerda adolescentóide e pseudo-emancipadora à direita liberal responsável pela financeirização da realidade. Resulta daqui o desentendimento cada vez mais ruidoso entre os sujeitos e a dissolução de qualquer vínculo humano, mais forte que a contingência dos dias, entre eles.

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A hipótese moderna da emancipação é cada vez mais soterrada nos abismos de servidões a que
voluntariamente ou impensadamente aderimos. Dos hábitos de consumo dementes à narcotização da consciência a tudo servimos mas sobretudo do eu somos escravos.
Tudo isto é servido num discurso de alteridade, de atenção ao outro, que decorre mais da insaciável voracidade do eu do que verdadeira possibilidade de relação.
Se já nem a mesma língua falamos como nos compreenderemos?