Fillhos de Deus








Acha que as pessoas eram mais ruins nessa época do que são agora? indagou o auxiliar.
O velho contemplava a cidade inundada. Não, respondeu. Não me parece. Acho que as pessoas são iguais desde o dia em que Deus criou a primeira.


Filho de Deus | Cormac McCarthy / 1973



As personagens de Cormac McCarthy aproximam-nos de Deus.
O Mal existe e existe em cada um de nós. O mistério de cada ser humano é em McCarthy reduzido à cinza da impossível redenção. Vagantes, em deambulação incessante e louca, como indivíduos postos à margem da família humana, entregues a si mesmos e de si mesmos à sua própria loucura.
E talvez seja esta a palavra de Deus revelada por McCarthy: o silêncio brutal com que Deus confronta a ainda maior brutalidade de que cada um de nós é capaz. O silêncio de Deus diante do Mal.
Lester Ballard, por exemplo, patético assassino e necrófilo, que faz do sexo com os cadáveres que amontoa nas cavernas por onde pernoita o troféu de uma existência condenada à omissão da sua própria humanidade e que, exactamente do lado de lá da sua humanidade, se revela ele próprio humano.
O critério de McCarthy é a assunção da realidade do Mal que habita em nós e por nós no mundo. As suas personagens, em toda a sua sordidez, depravação e monstruosidade, não são o incomum, o excepcional, da gramática do ser. Pelo contrário, são a linguagem comum com que dizemos a nossa própria humanidade. Por isso as encontremos em permanente digressão, em incessante nomadismo à procura dessa humanidade.
Como a besta que é parte do humano, só desse reduto humano se pode aceder a uma possível salvação. Talvez seja essa humanidade que Deus permite que se revele no silêncio com que nos abandona.