Estúpida paisagem


Lisboa acorda sitiada por dentro: turismo de massas; reabilitação hostelizante; golden-visação do parque habitacional; airbnbização das redes de vizinhança e de bairros inteiros. Soterrados nos escombros da crise económica, legitimamente procuramos pontos de fuga e possibilidades de sobrevivência.


1. Empreendedorismo hipster: Lisboa, cidade de serviços

O discurso vazio do empreendedorismo, num primeiro momento, emitido pela instância política (central) e a adesão a este discurso – ainda que epidérmica e ambígua, como é sempre, de resto, culturalmente a adesão dos portugueses a tudo o que vem «lá de fora» - por parte de exércitos de jovens qualificados desempregados, são o rosto mais visível e glamouroso da terceirização de Lisboa. A pretensão é a de uma cidade asséptica, clean, onde todos sejamos energicamente jovens pró-activos intervenientes das indústrias criativas e/ou I.T’s em detrimento das actividades tradicionais e industriais. A Câmara Municipal patrocina startups, ninhos de empresas, meros escritórios de sonhos destinados à frustração – perdoe-se o pessimismo.
A cidade das startups é uma cidade desvinculada do real. Será uma Lisboa construída para e por um desígnio social inexequível – aqui e em qualquer parte do mundo – de uma monocultura laboral (indústrias criativas/finança/I.T’s), que por muita sedução que se nos ofereça é, diremos, absurda e irreal.
Esta é uma Lisboa que se pretende rever nas duas ou três páginas que a Monocle ou a Wallpaper lhe oferece de quando em quando e que disso faz acontecimento cultural e social de uma relevância que não tem.

2. Airbnbização do quotidiano: Lisboa, cidade de turistas.

No entanto, a realidade, essa besta, é bem mais divertida, complexa e contraditória, que as visões do progresso dos nossos gurus do empreendedorismo. Verificamos que as actividades que mais têm sido sujeitas ao ímpeto modernizador são as actividades tradicionais do pequeno comércio e, sobretudo, da restauração. Surpreendentemente, ou talvez não, os nossos jovens qualificados e abandonados ao desemprego foram ao baú dos avós e descobriram as receitas tradicionais, os petiscos de outrora, os objectos da vida portuguesa carregados, até há pouco tempo, do lastro de um Portugal arcaico do qual, até com o discurso da adesão à Europa, se fugia a todo o custo. As imagens ainda vivas da pobreza das gerações anteriores, da sardinha que se dividia por cinco, foram resgatadass, embrulhadas e transfiguradas em objectos de sedução que se afirmam agora como genuinamente portugueses. Uma cidade de cadeias de hamburgarias e bifanarias do bairro, como tentativa espúria da recuperação/construção de uma memória do que nunca existiu. Uma cidade atada ao deslumbramento parolo da marca Portugal, que redescobre a sardinha de conserva e as pataniscas de bacalhau, outrora representações do atavismo lisboeta, hoje guindados a símbolo de uma pós-modernidade timidamente afirmativa dos nossos valores dentro do contexto da globalização.
Mas apesar de tudo, as arcaicas & pós-modernas latas de conservas não servem para nós, lisboetas, habitantes de lisboa, os que cá trabalham e vivem. A marca Portugal é mais um isco very-typical e de sedução às classes-médias europeias que aqui chegam pelas companhias de aviação low-cost.
Se a fuga à crise, embrulhada no discurso do empreendedorismo, uniformizou o pequeno comércio e a restauração a partir de imagens que resultam num postiço de tradição e modernidade – começa a ser difícil almoçar um bitoque que não esteja mergulhado num molho conceptual – a cidade disneylandiza-se. Lisboa transforma-se lentamente em parque temático onde todas as opções da política urbana são direccionadas para o acolhimento às massas do turismo.
O turismo é visto pelos poderes públicos como hipótese redentora do país que, num assomo de modernidade induzida pelas directivas de Bruxelas, pacata e provincianamente abateu e desmantelou todas as actividades económicas que tradicionalmente o alimentavam.
Lisboa tranquilamente abandona os lisboetas e estes esvaziam os seus apartamentos para short-rental aos turistas acidentais. A pouco e pouco revertemos o parque habitacional para o aluguer temporário às aves migratórias da globalização. Um imóvel é agora apenas e só uma oportunidade de investimento. Uma casa já não é uma casa, é uma aplicação.
A vida nos bairros «históricos» torna-se um inferno. Ridículos e excessivos tuck-tucks – a fazer lembrar imagens de riquexós e de subserviência -; sôfregos agentes imobiliários – sector que tem acolhido milhares de desempregados e os explora com o regime de comissões – que depois dos chineses, (em migração para Espanha devido às tribulações dos golden-visa), se dedicam agora a incitar franceses e outras nacionalidades em fuga às brutais cargas fiscais impostas pelas gloriosas e decadentes sociais-democracias do norte, ao investimento seguro e de alta rentabilidade na charmosa Lisboa; hotéis de charme e boutiques hosteis que impregnam a cidade e arrasam com o pouco que resta do viver habitual da cidade.


3. Golden-visação da propriedade: saudades da ética do pato-bravo.

Dizimados pela crise, os tradicionais actores da construção civil e do imobiliário, os pequenos empreiteiros, os patos-bravos que tanta gente empregavam, desapareceram de vez. Os que sobraram estão agora ao serviço dos poucos a quem sobrou algum dinheiro e, oportunistas, vêm as óbvias oportunidades de uma cidade que se supõe a reconfigurar a partir do seu centro.
Os até há poucos anos promotores imobiliários, agora a braços com falências e execuções e o desamparo do desaparecimento do BES, são substituídos por indivíduos que, como cogumelos, aparecem do nada, trazendo na mala muito dinheiro e ilusões de multiplicação deste.
O imobiliário acolhe quem foge da instabilidade da bolsa e, assim, financeiriza-se: um imóvel é comprado, pintado e vendido, num espaço de poucas semanas e com rentabilidades, no mínimo, intrigantes – a mão invisível e a teleologia de mercado não explicam tudo. Mas diversamente do outrora tão vituperado pato-bravo, qualquer traço de ética, ainda que mínimo, esfumou-se na voracidade e velocidade da circulação do capital investido.
O pato-bravo aparecia, fazia a obra, comercializava-a e, talvez por isso mesmo, era obrigado a um critério mínimo de ética e de qualidade construtiva. Os que hoje acorrem com ganância ao sector imobiliário, soltos das amarras garantistas construtivas e éticas que a venda do imóvel para habitação impunha, operam pequenas obras à superfície de imóveis que, na maior parte dos casos, se encontravam há longo tempo devolutos e, consequentemente, sem quaisquer condições habitabilidade e segurança. Caricaturando, um mero balde de tinta pode tornar-se um investimento que resultará num retorno de milhares de euros.


4. O evento e o quotidiano: excrescências do inferno.

Por último, um outro fenómeno que atravessa Lisboa é a loucura dos eventos. Mais do que urbanístico ou arquitectónico, este será, talvez, um fenómeno para verificação psicanalítica e antropológica.
Tudo é que é «espaço verde» ou jardim, a partir da Primavera é ocupado com eventos. Eventos que celebram um multiculturalismo politicamente-correcto, festivais que comemoram a vida, o cão, o gato e o canário, eventos de causas e lutas patrocinadas por cervejeiras. De repente, toda a vida se transforma e transtorna num eterno evento -  naturalmente para disseminação viral nas redes sociais. Provavelmente, tal como estes eventos ocupam os vazios da cidade, serão, primeiramente, para ocupar os vazios existenciais do cidadão. Ocupado e cada vez mais esmagado pelo peso do trabalho, que organiza todo o quotidiano da vida e da cidade, quando sozinho, confrontado consigo mesmo e em tempos desocupados do serviço, o pobre do cidadão deixa de ter direito ao silêncio para ter de suportar uma plêiade de acontecimentos e eventos e festivais que cobrem todos os fins-de-semana soalheiros. O silêncio e a tranquilidade dos bairros torna-se um luxo. O acontecimento para massas ao ar livre perpetua a alienação do consumo – aliás, o próprio evento é, por um lado, fenómeno para ser consumido e, por outro, constituído a partir da própria lógica da mercantilização capitalista da realidade que tudo coisifica. O tempo é coisificado, o silêncio é objectificado. Tudo é medido e mensurável: o descanso e o silêncio têm um preço alto.


Pode uma cidade sobreviver assim?

Esta é uma Lisboa que troca uma estação de combóio por um jardim. Em que a obsessão do turismo se concretiza como uma avalanche que destrói a ecologia urbana. Em que o embasbacamento empreendedor uniformiza os restaurantes, cafés, as tascas e a vida, ela própria já devidamente vigiada pela ASAE. É uma cidade onde o espaço público é paulatinamente capturado pelo interesse particular, seja o do pequeno café que com umas três ou quatro mesas ocupa dois terços do passeio em calçada, seja o das grandes empresas que alugam praças e avenidas inteiras – para a realização de eventos, evidentemente.
Os lisboetas prosseguem o seu percurso de fuga para as periferias. Lisboa transforma-se apenas em local de trabalho onde artificialmente se presume reconstruir, em plástico, uma memória daquilo que nunca foi.

E aos lugares é estranha a avalanche da turistificação do olhar, outra forma de esteticização da realidade a partir das categorias do consumo. A crítica de Benjamin à reprodutibilidade da obra de arte na era da técnica enuncia claramente a capacidade da fotofgrafia (por exemplo) tornar a miséria humana objecto de consumo. Também a arquitectura. Também as cidades

Tudo hostelizar, golden-visar, airbnbizar, é levar por diante, pela arquitectura, pelo urbanismo, a espectacularização do vazio e do plástico, tornando-a, à cidade, mero objecto de consumo sem qualquer relação com a vida vivida da polis