Felizes os que morreram por cidades carnais,/Porque elas são o corpo da cidade de Deus

Virgem Negra, Rocamadour, França 

Desde o início da minha estadia que me habituara a ir todos os dias à capela Notre-Dame e a sentar-me uns minutos diante da Virgem Negra - a mesma que há mais de mil anos inspirava tantas peregrinações e perante a qual se tinham ajoelhado tantos santos e tantos reis. Era uma imagem estranha, que testemunhava um universo inteiramente desaparecido. A Virgem estava sentada, muito direita; o seu rosto de olhos fechados, tão distante que parecia extraterrestre, estava coroada com um diadema. O Menino Jesus - que em boa verdade não tinha feições de criança, mas é adulto, e até de velho - estava sentado, também ele muito direito, nos joelhos da Virgem; também ele tinha olhos fechados, e o seu rosto penetrante, sábio e poderoso estava igualmente encimado por uma coroa. Não havia qualquer ternura, qualquer carência maternal quer na atitude dos olhos, quer na do rosto. Não era o Menino Jesus que ali estava representado; era já o rei do mundo. A sua serenidade, a sensação de poder espiritual, de força intangível que dele emanavam eram quase assustadoras. 

Matthias Grünewald, A Crucificação (detalhe), 1523–1525 



Esta representação sobre-humana estava nos antípodas do Cristo torturado, sofredor, que fora representado por Matthias Grünewald e que tanto impressionara Huysmans. A Idade Média de Huysmans era a idade gótica e até mesmo do gótico tardio: patética, realista, moral, estava já próxima do Renascimento, mais do que da era romana. Eu lembrava-me de uma conversa que tivera, uns anos antes, com um professor de história da Sorbonne. No início da Idade Média, explicará-me ele, a questão do julgamento individual quase não se colocava; foi muito mais tarde, com Hiëronymus Bosh, por exemplo, que surgiram as representações assustadoras em que Cristo separa a corte dos eleitos da legião dos condenados; em que há diabos a arrastar para os suplícios do Inferno os pecadores não arrependidos. A visão romana era diferente, muito mais unanimista: ao morrer, o crente entrava num estado de sono profundo e recolhia-se na terra. Após o cumprimento de todas as profecias, na hora do segundo advento de Cristo, era o povo cristão inteiro, unido e solidário, que se erguia do túmulo, ressuscitado no seu corpo glorioso, e que se punha e, marcha para o Paraíso. 

Hiëronymus Bosh, Jardim das Delícias (detalhe), 1490-1510


O julgamento moral, o julgamento individual, a individualidade em si mesma não eram noções compreendidas pelos homens da idade romana, e também eu sentia a minha individualidade a dissolver-se, ao longo dos meus sonhos cada vez mais prolongados diante da Virgem de Rocamadour. 



Submissão | Michel Houellebecq / 2015