da dificuldade em Humpty Dumpty se manter sobre o muro

[Sky Mirror, Anish Kapoor, 2006]






Assustai-vos. Assustai-vos, preclaro leitor, sempre que ouvirdes de um homem que não obedece a dogmas. A verdade, a Verdade, é bem capaz de ser de outra ordem que não a das palavras. Subjaz atrás delas, antes delas, como húmus que lhes dá alimento. Imperceptível. Quase invisível. E o discurso anti-dogma, à superfície de um livre-pensamento, aponta directamente ao coração de uma cultura que se ergue(u) sólida do maciço do dogma. Um discurso de diálise. Moderno, et pour cause, supostamente emancipador do indivíduo, orgulhoso, que durante toda a história da humanidade terá sido agrilhoado à opressão do céu, da terra, do próximo, do outro, da cultura e, provavelmente, do canário. Uma longa noite escura de ignorância redimida a 14 de Julho de 1789. E de então para cá, sim, o progresso. Radioso. Tanto quanto hoje o experimentamos.

O espectáculo abre-se em cascata. Espectáculos dentro de espectáculos. Já avisara Deleuze - anti-dogmático instituído agora em dogma? – tudo se dobra, desdobra, redobra, e quem sabe tenhamos recuado ao barroco. A crise são crises. Crises dentro da crise. Septicémia do corpo social que evidentemente infecta o emancipado sujeito. A inteligência – e perversidade - do capitalismo é precisamente o movimento de absorção para o seu interior aquilo que aparentemente se afirma como margem, (cf. naquilo que se conhece como arte contemporânea).

Pedir a um crítico profissional que esboce um horizonte tem a mesma pertinência que pedir ao Jorge Coelho que tutele o ordenamento do território português. É esse o espectáculo que dá da classe Paul Goldberger: o problema não é afinal starsystem a mais, sê-lo-á, porventura, a menos; os ícones dos feitos da modernidade e da pós-modernidade não são apenas ícones, são agora altares diante dos quais todos nós dos devemos prostrar contritos; a criatividade é difícil, a objecção à livre-insanidade do arquitecto ora pela acusação de inconsistência, no caso de diferença, ora pela de auto-paródia, no caso de repetição. Foi a especulação, não foram os arquitectos, não foi a boa vontade dos construtores, foi o dinheiro que tudo suja. Somos todos bons selvagens.
E tudo se resume ao sistema mediático. É aqui que tudo se legitima. Onde tudo nasce e tudo morre. Alfa e ómega do que se foi construindo nas últimas décadas, atmosfera cultural inescapável, sortilégio mais ou menos frívolo de imagens sem espessura nem gravidade, jogo de espelhos e de enganos, distorção do real, fabricação da realidade a duas dimensões, sem cheiro nem cor – hoje em dia é tudo branco psicótico – nem dor.
Arquitectura? Claro, no necesitamos más. A emancipação deixou-nos sós. Sem nada que construir.