paisagens in extremis


[Fata Morgana, Werner Herzog, 1969]







Da Base Aérea de Wendover, centro de treino dos homens que largaram a bomba atómica sobre Hiroshima, restam hoje ruínas. E memórias.
Lugar central da história do séc. XX, no meio do deserto do Utah, restam os destroços da ciência e da geopolítica. Devastação que ninguém esquece, abandonada do meio de nada, que cobre, ainda, todo a históia do planeta e a toda a forma de vida conhecida na Terra. Lugar esquecido impossível de esquecer, por entre aço torcido, terra estéril e loucura.





[Brasília]



A loucura das utopias, tanto quanto o desprezo pelo homem, é o desprezo pela sua contigência. O ódio ao real, projectado noutros futuros, arrancados com violência às possibilidades do hoje.
A utopia brasiliense soçobra agora às forças que a própria utopia pôs em andamento: mercados imobiliários vorazes que sitiam a política; o consumo como categoria única de construção individual e social, a exclusão e o ressentimento. E a óbvia impossibilidade de se erguer uma cidade, uma comunidade e uma sociedade a partir destes valores.
No coração do Brasil, a democracia equivocamente transparente das superfícies de vidro de Niemeyer sob o sol tropical, a impossibilidade de vizinhança nas superquadras de Lúcio Costa sobre a terra deserta, a cidade sitiada por si própria.
As ideologias, todas, não são mais que a maneira de querer transformar o real pela lei da força e pelo terror – e a realidade portuguesa do presente confirma-o à saciedade -; dispositivos intelectuais do interesse de uns poucos, sem adesão à realidade, sem percepção da integralidade dos lugares e dos homens e da sua acção neles – que justamente só através dessa acção devêm lugares.
A política exilou-se no Palácio do Planalto e exilou a cidade e os cidadãos. É impossível a liberdade nesta ruína de cidade nova.
O planeta favela não nos afecta a uns poucos, é o coração do que estamos hoje a construir.





[Pousada Favelinha, Rio de Janeiro]



E aos lugares é estranha a avalanche da turistificação do olhar, outra forma de esteticização da realidade a partir das categorias do consumo. A crítica de Benjamin à reprodutibilidade da obra de arte na era da técnica enuncia claramente a capacidade da fotofgrafia (por exemplo) tornar a miséria humana objecto de consumo. Também a arquitectura.
Transformar uma laje (casa na favela) em pousada é levar por diante, pela arquitectura, a espectacularização da miséria, tornando-a objecto de consumo – ainda que distanciado da experiência real do quotidiano – sem qualquer relação com a vida vivida das favelas. O baile funk por cima da laje para patricinha da Zona Sul do Rio experimentar a dureza do morro ao sábado à noite ou para gringo sedento da carne das neguinhas é apenas uma forma perversa da democracia e um muito violento uso do poder (de compra). Passivos, somos todos espectadores das nossas próprias vidas. Alguém lucrará.





[Hearst Castle, Califórnia]



Steve Hearst, bisneto do magnata William Randolph Hearst, proprietário dessoutra ruína nova que inspirou a Xanadu de Orson Welles, lucrará com certeza com a abertura desse delírio monstruoso ao público. E, como no Rio de Janeiro, é a mediatização e a espectacularização das feridas de narciso abertas em cada um pela volúpia das imagens que espoleta o interesse e que renderá fartos proventos.


Loucura, delírio e violência, semântica da mesma utopia, é um bom negócio. Mas mortal.