métro, boulot, dodo


[Estação do Metro do Marquês de Pombal, José Santa Rita + João Santa Rita, 1999]






Entendo a generosidade e o prazer do outro que recordo de uma entrevista ao Arqtº. Manuel Graça Dias – não recordo quando, não recordo onde – enquanto percorria cidades do mundo, com amor grande e devoção à mais importante e complexa realização da humanidade. Entende-se o amor, pela casualidade do mundo, pelo caos que nas cidades organizamos, pelos significados que se recolhem nas ruas e aumentam o mundo, a devoção ao mundo e às coisas dos homens que decidem o seu destino comum. Às cidades, que obedecem à necessidade de resistência, a exceder os limites da mortalidade humana. À vida prtática e à beleza. A beleza da duração, para as prolongar. Pelo encontro.




[Admitindo ainda que seja, neste discurso, a manutenção do módico de pudor sobre a vida íntima do outro - que, de facto, em nada importa ao espaço público - lembro também nessa entrevista alguma recusa do território doméstico. Um excessivo pensamento da praticabilidade do que é íntimo, e sobre o espaço do íntimo, um certo funcionalismo do dormir, comer, foder, como estritas necessidades biológicas – não por acaso as estritas funções que permitem manter saudável indivíduo que age sobre o espaço público da cidade.
Talvez não tenha recordado Manuel Graça Dias da possibilidade de dar a volta ao mundo sem se sair do quarto, quem nem só de milhas andadas se erguem toneladas de literatura de viagens, de lautas refeições, ou, maior pecado, a Manuel Graça Dias não tenha ocorrido a sequência de abertura de Le Mépris. Aventura maior?

A partir do encontro na polis produz-se o sentido colectivo da existência que, necessariamente, terá que ser reflectido nos instantes de recolhimento ao abrigo interior para, a partir deste, se regressar ao passeio público e ao outro.]


Mas falava também de densidade, necessariamente de deslocações, de mobilidade. E da monotonia das viagens de metro. Enfadonhas, provavelmente.
Monótonas como, à superfície pública, serão todas as vidas privadas com que nos cruzamos na cidade. Em percursos pré-definidos, debaixo do chão, a contrariar essa cidade aberta e livre que Manuel Graça Dias ama – às quais aqui devotamos também grande amor – em túneis escuros, connosco atados a Pod’s, Phone’s, Pads, jornais, livros– outra maneira do espaço privado.
Vejamos, o terror escondido ao cruzar os olhos da garota do banco da frente, uma viagem à possível vida do rapaz do skate encostado à porta da carruagem repetitiva, da velha elegante de outra Av. de Roma, de outra velha mais velha mais à frente na puída Almirante Reis – ocorre-me uma outra sequência, na Berlim dividida pelos homens e dos anjos do desejo nos compreendem nessas minúsculas viagens, e nos amam tanto que connosco, homens, desejam viajar. Aventuras. Liberdade.

Como o encontro com o outro só é possível depois do encontro connosco mesmos, a realidade da superfície, a vida vivida da cidade, em alegria e liberdade, só será possível se nos for possível o recolhimento ao território interior. Onde nos possamos privar do outro e da cidade. Onde nos é dada a possibilidade de, imaginemos, sermos monótonos. Mesmo num buraco abaixo da superfície das coisas.




[O encontro, a beleza, são possíveis numa esquina vazia da estação do Marquês.]