Melhor do que isso só mesmo o silêncio. E melhor do que o silêncio só João.* E Siza.

 [Fundação Iberê Camargo, Álvaro Siza, Porto Alegre, © Alexandra Lucas Coelho]


l. Eu não sabia como começar a falar de Porto Alegre para falar dessa iluminação que é a obra de Álvaro Siza em Porto Alegre.

Então João Gilberto veio em meu auxílio.

Quando dois assuntos esbarram um com o outro na nossa cabeça, é porque já têm algo em comum, independente de qualquer cabeça. No caso de Siza e João, uma iluminação em Porto Alegre.

2. João esbarrou com Siza estava eu mergulhada na leitura de Chega de Saudade, um dos livros de Ruy Castro sobre a bossa nova. Parei de o ler agora, na página 215, porque esta crónica sai antes do que tenho de escrever sobre João.

Que contava Ruy Castro? Pois que no começo de 1955 João chegara ao fundo do seu poço no Rio de Janeiro. Esgotara a paciência e os sofás dos amigos. Se o virassem de cabeça para baixo, não cairia um tostão. Vagueava como um indigente, sem dinheiro mesmo para o bonde, cabelo pelos ombros, roupa de quem dormiu com ela uma semana. E a haver plata seria para um fino na Lapa, que na gíria da altura (e até hoje) não quer dizer cerveja e sim marijuana, na sua versão mais barata. Ele vinha da Bahia, viera para o Rio ser tudo o que sabia que era, mas o Rio teimava em não ver. Até que um gaúcho chamado Luís Telles o resgatou, levando-o para a capital dos gaúchos, lá no Sul. Porto Alegre seria o descanso de Joãozinho, com direito a Hotel Majestic na Rua da Praia. E Joãozinho seduziu Porto Alegre, desde o cozinheiro aos boémios gaúchos que passaram a ir dormir de manhã e a falar lento como João, encantados com a voz e o violão do baiano. Em Porto Alegre, conta Ruy Castro, é que João Gilberto começou a sua ascensão até à tona, de onde emergiu com a batida da bossa nova. Ainda teria de passar por Diamantina, Juazeiro e Salvador antes de voltar ao Rio, mas Porto Alegre deu o impulso para cima. Sete meses de raro bem-estar, incluindo uma inédita festa-surpresa a 10 de Junho de 1955, o dia em que João Gilberto fez 24 anos.

3. A primeira vez que fui a Porto Alegre, há um ano, andei pela Rua da Praia com um velho combatente contra a ditadura, passámos pela casa do poeta Mário Quintana e as águas do Guaíba estavam invernosas.

À beira destas águas acamparam uns 250 casais açorianos no meio do século XVIII. A coroa portuguesa tinha enviado mil pares desde os Açores para povoarem as terras do Sul. Parte deles estacionou ali, julgando provavelmente estar diante de um rio - e só há muito pouco tempo os cientistas decidiram que o Guaíba era afinal um lago.

Assim nasceu Porto Alegre, tetraneta de açorianos que depois no século XIX se cruzaram com espanhóis, alemães, italianos, africanos, polacos.

Aqui estudou o gaúcho do interior Getúlio Vargas antes de ser ditador, aqui trabalhou Dilma Rousseff antes de ser Presidente, e aqui falou Mario Vargas Llosa depois de ser Nobel. Por ele vim, há um ano, em reportagem. Mais valia ter ido à beira do Guaíba ver o que Siza viu, e fez.

4. Mas eis que agora, de raspão, volto a Porto Alegre a convite de uma universidade nos arredores. E peço um par de horas para ir à Fundação Iberê Camargo antes de apanhar o avião da noite.

Criada depois da morte do pintor gaúcho Iberê Camargo (1914-1994), esta fundação esteve alojada na casa que fora dele até que o apoio de mecenas permitiu convidar Álvaro Siza para conceber uma sede. O projecto ganhou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza em 2002, começou a ser construído logo a seguir num terreno oferecido pela câmara e ficou pronto em 2008.

O arquitecto chama-lhe uma "quase escultura". Sim, e talvez pelas fotografias se possa entender porquê. Mas nenhuma obra de Siza me pareceu tanto uma experiência extra-sensorial.

5. A matéria, betão branco, aparece de repente, indo nós pela marginal, com a montanha à esquerda e o lago à direita. Há uma espécie de buraco na montanha e o museu incrusta-se aí, como se preenchesse uma ausência. É um espaço estreitíssimo, o que obrigou o estacionamento a ficar debaixo da própria estrada. O projecto teria de ser mais em altura que em largura, e assim sobe por três andares, com uns braços exteriores que se desprendem da estrutura e ficam parcialmente suspensos.

Betão branco, uma marginal, uma árvore, um lago que é a ilusão de um rio - eis os materiais, soprados pelo vento e pelo fluxo constante dos automóveis.

Então entramos por uma porta de vidro, pisamos madeira. Átrio com pé-direito a toda a altura do edifício, superfícies brancas temperadas apenas pelo mel da madeira indígena, perobinha. E do lado direito, rampas, uma por cima da outra, curvilíneas.

A tentação inicial é pensar nas curvas e rampas de Oscar Niemeyer, por exemplo o interior da Bienal de São Paulo. Como lá fora podemos pensar nos braços de betão em bruto que ligam as duas torres do SESC Pompeia, projecto de Lina Bo Bardi, também em São Paulo.

Mas então começamos a subir a primeira rampa, e vem o impacto da luz, do claro-escuro, do ponto de fuga. Porque estas rampas de Siza só inicialmente contornam o grande vão central. Na parte que lá fora está suspensa são corredores entre a escuridão e a luz em que nos achamos sós. Levantamos o queixo para as clarabóias, círculos de luz natural ao lado de rectângulos de luz artificial, a parede cresce e afunila consoante nos conduz, e ao fundo sempre aquela luz difusa, cega, como nos sonhos em que imaginamos o depois da morte.

Siza é aquele não-crente que fez uma igreja única em Marco de Canaveses. Lembro-me de lá estar sentada, o rasgão de luz do lado direito, a porta altíssima atrás. Eu já tinha estado em Jerusalém, aquilo não tinha nada a ver com o Santo Sepulcro, mas tinha tudo a ver com a fé dos antigos. E agora, ao longo destes braços suspensos no ar, esqueço-me que estou em Porto Alegre, avanço como num lugar transcendente. De cada vez que a rampa sai para o vão central, volta à forma e à matéria, depuradas como uma síntese de todo o Siza, linhas curvas e rectas entrelaçadas em feixes de luz branca, com janelas flutuando sobre a água e a cidade, muito além. Depois a rampa seguinte puxa de novo para dentro, para o que houver além da morte. A luz é um íman.

Passos, respiração, silêncio. Que ouviria João?



[Siza em Porto Alegre passando por João, Alexandra Lucas Coelho, Público, 22.10.2011]





*Pra Ninguém, Caetano Veloso, 1997