exilium#3


[Ipanema, Rio de Janeiro]



Uma das evidências dos lugares é a arquitectura. O homem constrói porque habita. O espaço construído no lugar que resulta do refluxo minucioso do trabalho telúrico, oculto, dos lugares com as pedras que juntamos. É pelo desejo que as mãos fazem coincidir e revelar a geografia com o que transportamos: montanhas e vales; mitologias pessoais e colectivas; experiências do passado que não recordamos; o corpo; a superfície fria da solidão necessária à mais proveitosa reunião gregária. Depois, a topologia: a invenção dos nomes e tentativa de dizer o mundo; o combate à resistência do mundo que persiste em ocultar-se e em dizer-se. Talvez menos subtil e volátil que a poesia, é também este o trabalho da arquitectura.

Michel Onfray ensaia dizer os lugares através da(s) viagem(s). O viajante, nómada que se cumpre no desenraizamento e na afirmação dionisíaca da descoberta de si na diversidade do mundo. É a este viajante que cabe contrariar a supressão da História que as cidades globais pretendem contar. É este o Marco Pólo exaltado que conta ao Kahn, de si para si, a beleza que encontra no mundo e nas cidades. O viajante que celebra o avião 'que troça do ar', ri da gravidade e, ao fazer a volta ao mundo, é com o prazer infantil se comove com distância que nos une a todos ao ‘fogo furioso incandescente’ do centro da Terra. O viajante, máquina desejante de Deleuze, ligação e interpenetração dos ‘fluxos contínuos’ que nos re-ligam aos confins do Universo.

A alternância entre partidas e chegadas, que pode ser uma possibilidade para uma definição do habitar heideggeriano, é, em Augé, o palimpsesto onde se reinscreve, incessante, o jogo da identidade e das relações com o mundo a partir dos quais ela se constrói: como extremidades inalcançáveis, o lugar que nunca se apaga verdadeiramente e o não-lugar que resiste a realizar-se. Uma escrita, débil, precária, da permanente incompletude, ou da inatingível completude.

O reencontro.
O Judeu Errante, o condenado ao qual não é permitido fixar-se – habitar - é o que nunca chega a casa, o que nunca acha o sentido da viagem. E do mundo. A viagem - o mundo - só se reconhece na sua plenitude no reencontro com a morada. Na casa. No habitar. 'Na arte do habitar concentram-se práticas de arquivo quotidianos, é verdade, mas também se articulam hábitos, rituais sem os quais a angústia não pode ser conjurada, permanecendo e consumindo o corpo e a alma.' É necessária a demora e a ritualização dos dias. Permanecer – ser - junto ao fogo familiar e determo-nos nas leis da hospitalidade que exigem tecto sedentário. O lugar que se reencontra e torna inteligível no habitar.

Eis a perturbação do viajante que é também política: contra a ponderosas razões (e i-razões), de Estado, sangue, de solo, o viajante é o que procura o mundo, dizê-lo de novo, singular, único; é quem perturba e desorganiza a disposição social estabelecida. É o que ama a liberdade, conduz o seu destino pelo Sol e contraria a paz aparente do quotidiano. O estrangeiro que nos outros lugares (do outro) se descobre a si mesmo. ‘Nós próprios, eis a grande questão da viagem.’

O mundo constituído e dito por todos os lugares e manhãs do mundo, em somos peregrinos, onde a peregrinação é o modo do habitar.