ah merda, morri#2






[Estação de Metro do Flamengo, Rio de Janeiro, 2011]


Naquele dia, depois que deixamos os nossos postos de observação no passeio público para caminhar pelo centro da cidade, Austerlitz falou longamente sobre as marcas do sofrimento que, como ele dizia saber, atravessam a história com inúmeras linhas delgadas. Em seus estudos sobre arquitetura das estações de trem, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares estranhos, embora tais emoções não façam parte da história da arquitectura. Mas talvez justamente os nossos projectos mais ambiciosos traíam da forma mais patente o grau da nossa insegurança. A construção de fortalezas, por exemplo (…)


Pelo exemplo de tais fortificações, mais ou menos assim Austerlitz conluiu suas observações feitas no Mercado de Luvas de Antuérpia, erguendo-se da mesa e pendurando a mochila no ombro, podemos ver com clareza como nós, ao contrário, digamos, das aves, que constroem sempre o mesmo ninho há milénios, tendemos a expandir nossos empreendimentos muito além do limite do razoável. Seria preciso, disse ele, fazer um catálogo dos nossos edifícios, ordená-los segundo suas dimensões, e então ficaria imediatamente óbvio que os edifícios domésticos aquém das dimensões normais - a cabana nos campos, a ermida, o casebre do guarda da eclusa, o pavilhão do belvedere, a casinha de crianças no jardim – são aqueles que nos acenam ao menos com um vislumbre de paz, ao passo que ninguém em sã consciência diria que lhe agrada um edifício enorme como o Palácio de Justiça de Bruxelas, sobre a antiga colina do patíbulo. No máximo a pessoa o admira, e essa admiração já é um prenúncio de terror, porque sabe como por instinto que os edifícios superdimensionados lançam previamente a sombra de sua própria destruição e são concebidos desde o início em vista de sua posterior existência como ruínas.

[Austerlitz, W.G. Sebald]




[Terezín, Daniel Blaufuks, 2010]



Desde o início, o que mais me chamou a atenção foi o seu vazio, disse Austerlitz, algo que até hoje me é incompreensível. Eu sabia por Vera que Terezín voltara a ser uma comuna regular havia muitos anos, e no entanto levou quase quinze minutos para que eu avistasse a primeira pessoa do outro lado da praça, uma figura curvada para a frente que avançava com infinita lentidão, apoiando-se em uma bengala, mas bastou que eu desviasse o olhar um só momento, e ela desapareceu. Fora isso, não encontrei a manhã inteira mais ninguém nas ruas retas de Terezín, a não ser um desequilibrado mental com um terno esfarrapado que me cruzou o caminho entre as tílias do parque com a fonte e me contou não sei que história em um alemão estropiado enquanto agitava freneticamente os braços, até que ele também, ainda segurando a nota de cem coroas que eu lhe dera, foi engolido pelo chão, como dizem, enquanto corria para longe. Se o abandono dessa cidade fortificada, projetada como a ideal cidade do sol de Campanella segundo um rigoroso esquema geométrico, já era opressivo, mais opressivo ainda era o aspecto hostil das fachadas mudas, atrás de cujas janelas basculantes, por mais que eu erguesse a vista para elas, não se mexia uma única cortina. Eu não podia imaginar, disse Austerlitz, quem ainda morava naqueles edifícios desolados, se é que alguém morava ali, embora por outro lado me chamasse a atenção o grande número de latas de lixo numeradas de forma tosca com tinta vermelha e enfileiradas contra a parede nos pátios dos fundos. Porém o mais inquietante me pareceram as portas e portões de Terezín, que vedavam o acesso, como eu imaginava sentir, a uma escuridão jamais penetrada, na qual, pensei, disse Austerlitz, nada mais se mexia a não ser a cal que descascava das paredes e as aranhas que teciam os seus fios, corriam ligeiro pelo soalho com as suas pernas de passinhos curtos ou pendiam das suas teias, à espera. Só recentemente, prestes a despertar, lancei um olhar ao interior de uma dessas casernas de Terezín. Estava repleta, do chão ao teto, das teias desses animais engenhosos, camada sobre camada.




Assim que começou a amanhecer, pus as minhas coisas na mala, deixei o hotel na ilha de Kampa, atravessei a ponte Carlos envolta em névoa matutina, cruzei as ruas da Cidade Velha e a praça São Venceslau ainda deserta, e cheguei à estação central na Wilsonova, que, como se revelou, em nada correspondia à ideia que eu fazia dela com base no relato de Vera. Sua arquitetura Jungendstil, antes famosa muito além de Praga, fora cercada, obviamente nos anos 60, por medonhas fachadas de vidro e blocos de concreto, e levou algum tempo até eu encontrar uma entrada naquela construção fortificada, através de uma rampa de táxi que conduzia ao subsolo.


[Austerlitz, W.G. Sebald]